O combate à corrupção
foi palavra de ordem durante a ditadura. Nos porões do regime, porém, a
ilegalidade prevaleceu.
(Heloisa Maria Murgel Starling 23/3/2009)
Combater a corrupção e
derrotar o comunismo: esses eram os principais objetivos que fermentavam os
discursos nos quartéis, às vésperas do golpe que derrubou o governo João Goulart,
em março de 1964. A noção de corrupção dos militares sempre esteve identificada
com uma desonestidade específica: o mau trato do dinheiro público. Reduzia-se a
furto. Na perspectiva da caserna, corrupção era resultado dos vícios produzidos
por uma vida política de baixa qualidade moral e vinha associada, às vésperas
do golpe, ao comportamento viciado dos políticos diretamente vinculados ao
regime nacional-desenvolvimentista.
Animado por essa
lógica, tão logo iniciou seu governo, o marechal Castello Branco (1964-1967) prometeu
dar ampla divulgação às provas de corrupção do regime anterior por meio de um
livro branco da corrupção – promessa nunca cumprida, certamente porque seria
preciso admitir o envolvimento de militares nos episódios relatados. Desde o
início o regime militar fracassou no combate à corrupção, o que se deve em grande
parte a uma visão estritamente moral da corrupção.
Essa redução do
político ao que ele não é – a moral individual, a alternativa salvacionista –
definiu o desastre da estratégia de combate à corrupção do regime militar
brasileiro, ao mesmo tempo em que determinou o comportamento público de boa parte
de seus principais líderes, preocupados em valorizar ao extremo algo chamado de
decência pessoal. Os resultados da moralidade privada dos generais foram
insignificantes para a vida pública do país. O regime militar conviveu tanto
com os corruptos, e com sua disposição de fazer parte do governo, quanto com a
face mais exibida da corrupção, que compôs a lista dos grandes escândalos de
ladroagem da ditadura. Entre muitos outros estão a operação Capemi (Caixa de Pecúlio
dos Militares), que ganhou concorrência suspeita para a exploração de madeira
no Pará, e os desvios de verba na construção da ponte Rio–Niterói e da Rodovia
Transamazônica. Castello Branco descobriu depressa que esconjurar a corrupção
era fácil; prender corrupto era outra conversa: “o problema mais grave do
Brasil não é a subversão. É a corrupção, muito mais difícil de caracterizar,
punir e erradicar”. A declaração de Castello foi feita meses depois de
iniciados os trabalhos da Comissão Geral de Investigações. Projetada logo após
o golpe, a CGI conduzia os Inquéritos Policiais-Militares que deveriam
identificar o envolvimento dos acusados em atividades de subversão da ordem ou
de corrupção. Com jurisdição em todo o território nacional, seus processos
obedeciam a rito sumário e seus membros eram recrutados entre os oficiais
radicais da Marinha e da Aeronáutica que buscavam utilizar a CGI para construir
uma base de poder própria e paralela à Presidência da República.
O Ato Institucional n.º
5, editado em 13 de dezembro de 1968, deu início ao período mais violento e
repressivo do regime ditatorial brasileiro – e, de quebra, ampliou o alcance
dos mecanismos instituídos pelos militares para defender a moralidade pública.
Uma nova CGI foi gerada no âmbito do Ministério da Justiça com a tarefa de
realizar investigações e abrir inquéritos para fazer cumprir o estabelecido
pelo Artigo 8º. do AI-5, em que o presidente da República passava a poder
confiscar bens de “todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício
de cargo ou função pública”.
Para agir contra a
corrupção e dar conta da moralidade pública, os militares trabalharam tanto com
a natureza ditatorial do regime como com a vantagem fornecida pela legislação
punitiva. Deu em nada. Desde 1968 até 1978, quando foi extinta pelo general
Geisel, a CGI mancou das duas pernas. Seus integrantes alimentaram a arrogante
certeza de que podiam impedir qualquer forma de rapinagem do dinheiro público,
através da mera intimidação, convocando os cidadãos tidos como larápios
potenciais para esclarecimentos.
A CGI atribuiu-se ainda
a megalomaníaca tarefa de transformar o combate à corrupção numa rede nacional,
atuando ao mesmo tempo como um tribunal administrativo especial e como uma agência
de investigação e informação. Acabou submergindo na própria mediocridade,
enredada em uma área de atuação muito ampla que incluía investigar, por
exemplo, o atraso dos salários das professoras municipais de São José do
Mipibu, no Rio Grande do Norte; a compra de adubo superfaturado pela Secretaria
de Agricultura de Minas Gerais e as acusações de irregularidades na Federação
Baiana de Futebol. Entre 1968 e 1973 os integrantes da comissão produziram
cerca de 1.153 processos. Desse conjunto, mil foram arquivados; 58
transformados em propostas de confisco de bens por enriquecimento ilícito, e 41
foram alvo de decreto presidencial.
Mas o fracasso do
combate à corrupção não deve ser creditado exclusivamente aos desacertos da Comissão
Geral de Investigações ou à recusa de membros da nova ordem política em pagar o
preço da moralidade pública. A corrupção
não poupou a ditadura militar brasileira porque estava representada na própria
natureza desse regime. Estava inscrita em sua estrutura de poder e no princípio
de funcionamento de seu governo. Numa
ditadura onde a lei degradou em arbítrio e o corpo político foi esvaziado de
seu significado público, não cabia regra capaz de impedir a desmedida: havia
privilégios, apropriação privada do que seria o bem público, impunidade e excessos.
A corrupção se inscreve
na natureza do regime militar também na sua associação com a tortura – o máximo
de corrupção de nossa natureza humana. A prática da tortura política não foi
fruto das ações incidentais de personalidades desequilibradas, e nessa constatação
reside o escândalo e a dor. A existência da tortura não surgiu na história
desse regime nem como algo que escapou ao controle, nem como efeito não
controlado de uma guerra que se desenrolou apenas nos porões da ditadura, em
momentos restritos.
Ao se materializar sob
a forma de política de Estado durante a ditadura, em especial entre 1969 e
1977, a tortura se tornou inseparável da corrupção. Uma se sustentava na outra.
O regime militar elevou o torturador à condição de intocável: promoções
convencionais, gratificações salariais e até recompensa pública foram
garantidas aos integrantes do aparelho de repressão política. Caso exemplar: a
concessão da Medalha do Pacificador ao delegado Sérgio Paranhos Fleury
(1933-1979). A corrupção garantiu a
passagem da tortura quando esta precisou transbordar para outras áreas da
atividade pública, de modo a obter cumplicidade e legitimar seus resultados.
Para a tortura funcionar é preciso que na máquina judiciária existam aqueles
que reconheçam como legais e verossímeis processos absurdos, confissões
renegadas, laudos periciais mentirosos. Também é necessário encontrar gente
disposta a fraudar autópsias, autos de corpo de delito e a receber presos
marcados pela violência física. É preciso, ainda, descobrir empresários
dispostos a fornecer dotações extra-orçamentárias para que a máquina de repressão
política funcione com maior precisão e eficácia.
A corrupção quebra o
princípio da confiança, o elo que permite ao cidadão se associar para interferir
na vida de seu país, e ainda degrada o sentido do público. Por conta disso, nas
ditaduras, a corrupção tem funcionalidade: serve para garantir a dissipação da
vida pública. Nas democracias – e diante da República – seu efeito é outro: serve
para dissolver os princípios políticos que sustentam as condições para o
exercício da virtude do cidadão. O
regime militar brasileiro fracassou no combate à corrupção por uma razão
simples – só há um remédio contra a corrupção: mais democracia.
Heloisa Maria Murgel
Starling é professora de História da Universidade Federal de Minas Gerais e
co-autora de Corrupção: ensaios e críticas (Editora da UFMG, 2008).
Saiba Mais -
Bibliografia:
FICO, Carlos. Como eles
agiam: os subterrâneos da ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GASPARI, Elio. Coleção
As Ilusões Armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
RIBEIRO, Renato Janine.
A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.