O 'brexit' é uma bofetada espetacular nos caciques de Bruxelas, a
primeira fatura que a União Europeia pagará.
Causas imediatas e a vingança da democracia
Nos
últimos dias, os especialistas vêm se dedicando a enumerar as principais causas
do brexit. Coincidem em muitos argumentos, como o de apontar a deterioração do
Estado de bem-estar devido aos ajustes econômicos, o desemprego e a
precarização do trabalho, a crescente desigualdade social e territorial… A
nostalgia dos mais velhos pela época imperial e o desinteresse dos jovens pelo
voto também foram fatores.
Com relação à questão dos estrangeiros, são propostas diferentes e divergentes interpretações. Alguns remetem ao racismo e “aos nacionalismos de sempre, excludentes e chauvinistas, que desenham sociedades fechadas e empobrecidas moralmente” (editorial do El País, em 3 de julho). Para outros, o assunto é mais complexo. Manuel Castells, em artigo para o La Vanguardia (em 2 de julho) opina que “em contraste com as acusações de racismo, a crítica não foi contra oriundos do chamado Terceiro Mundo, pois elas estão sujeitas aos vistos”, mas sim contra a imigração que vem do leste da Europa, porque entra “sem controle e compete legalmente pelos postos de trabalho, pelas vagas nos hospitais e na educação, entre outros serviços públicos gratuitos, além da moradia e o seguro-desemprego”. O tema afeta menos a capital Londres, e mais as outras regiões industriais, agora envelhecidas e em plena depressão. Não se trata, portanto, de um nacionalismo étnico, mas de uma resistência diante da globalização e da perda de controle do país, e aquilo que se chama populismo seria, na verdade, “uma defesa da vida que resta”. As duas premissas podem ser certas, mas talvez uma mais que a outra.
Com relação à questão dos estrangeiros, são propostas diferentes e divergentes interpretações. Alguns remetem ao racismo e “aos nacionalismos de sempre, excludentes e chauvinistas, que desenham sociedades fechadas e empobrecidas moralmente” (editorial do El País, em 3 de julho). Para outros, o assunto é mais complexo. Manuel Castells, em artigo para o La Vanguardia (em 2 de julho) opina que “em contraste com as acusações de racismo, a crítica não foi contra oriundos do chamado Terceiro Mundo, pois elas estão sujeitas aos vistos”, mas sim contra a imigração que vem do leste da Europa, porque entra “sem controle e compete legalmente pelos postos de trabalho, pelas vagas nos hospitais e na educação, entre outros serviços públicos gratuitos, além da moradia e o seguro-desemprego”. O tema afeta menos a capital Londres, e mais as outras regiões industriais, agora envelhecidas e em plena depressão. Não se trata, portanto, de um nacionalismo étnico, mas de uma resistência diante da globalização e da perda de controle do país, e aquilo que se chama populismo seria, na verdade, “uma defesa da vida que resta”. As duas premissas podem ser certas, mas talvez uma mais que a outra.
Se incluímos nessa
reflexão a recente crise dos refugiados que fogem das guerras, alimentadas
pelos próprios poderes ocidentais, e os efeitos colaterais do terrorismo
nascido das políticas insensatas na Palestina, no Afeganistão, na Líbia, no
Iraque, na Síria… E se incluímos também a rejeição às elites da União Européia,
que defenderam as medidas para combater a crise financeira que logo cumprirá
dez anos vigente, teremos um retrato bom o suficiente para fazer um inventário
das causas imediatas da desilusão dos ingleses e do brexit. Em suma, foi um
voto de idade, de classe e territorial. Me permito sugerir a hipótese de um
voto religioso: os católicos apoiaram a permanência e os anglicanos a saída.
Em qualquer caso, foi a
vingança da democracia, do voto das pessoas “comuns”, contra a frieza
tecnocrata das elites. A imagem do ex-presidente da Comissão Européia, José
Manuel Durão Barroso, cruzando as portas giratórias da sede do Goldman Sachs
(que muitos consideram a entidade financeira mais influente no mundo atual),
onde ganha cinco milhões de euros por ano, sem renunciar à sua pensão
“europeia” de 18 mil euros mensais pelo cargo que tinha no organismo, podemos
entender melhor o assunto. “Nas mãos de quem nós estamos?” – esta é a pergunta
que todos nos fazemos.
Alguém resumiu com poucas palavras o estilo dos que governam
a Europa: “tudo para o povo, mas sem o povo”. O “brexit” é uma bofetada
espetacular nos caciques de Bruxelas, a primeira fatura que a União Européia
pagará. O projeto descarrilhará se seus líderes se empenharem em continuar
impulsando um europeísmo ilustrado paternalista, que não tem lugar no Século
XXI, com a democracia como única fonte legítima de fazer política. Atentos ao
futuro.
O brexit é uma vingança da geografia ou a
verdadeira razão geopolítica
Três semanas depois, as bolsas
se recuperaram da momentânea queda pós-brexit. Tudo volta ao normal, talvez
porque, geopoliticamente, o brexit é o normal…
Um conhecido ensaísta geopolítico, Robert Kaplan escreveu uma obra chamada “A vingança da geografia”, onde nos diz que a geografia é o pano fundo sobre o qual transcorre a História. Porém, por que relacionar esta sentença com o Reino Unido? Será que existe algo mais por trás do brexit?
Um conhecido ensaísta geopolítico, Robert Kaplan escreveu uma obra chamada “A vingança da geografia”, onde nos diz que a geografia é o pano fundo sobre o qual transcorre a História. Porém, por que relacionar esta sentença com o Reino Unido? Será que existe algo mais por trás do brexit?
Inglaterra há mil e cem anos, objeto de desejo
e cobiça continentais
A Inglaterra, ou o
território que hoje conhecemos como tal, se vinculou à Europa continental com a
conquista romana – iniciada por Júlio César, em meados do Século I a.C., e concluída
uma centena de anos depois, por Cláudio. Esta etapa de criação dos laços se
encerrou por volta do Século V, quando novas e sucessivas invasões foram sendo
construídas, a partir do substrato anterior celta-brítano-romano, um
conglomerado social dominado primeiro pelos anglo-saxões, logo pelos vikings
dinamarqueses, e finalmente pelos normandos – após a batalha de Hastings, em
1066. Em números redondos, durante mil e cem anos, a Inglaterra e os demais
povos britânicos foram invadidos uma e outra vez por grupos humanos procedentes
do continente.
Quatro séculos para cimentar a rivalidade anglo-francesa e quinhentos anos de estratégia extracontinental
Quatro séculos para cimentar a rivalidade anglo-francesa e quinhentos anos de estratégia extracontinental
A conquista por parte
dos normandos supõe uma inflexão histórica. A Inglaterra passou de ser terra de
conquista por parte de povos e elites continentais a se constituir um poder com
interesses territoriais, feudais e dinásticos na França, no continente. Durante
quatrocentos anos, a herança francesa dos normandos e as políticas matrimoniais
foram o fruto da discórdia entre uns e outros.
A história moderna
inglesa começa com sua derrota (em 1453) na Guerra dos Cem Anos, contra a
França, que implicou em sua renúncia a seguir disputando a corona francesa com
a dinastia dos Valois, além da perda de suas posses territoriais no continente.
Desta forma, seus interesses diretos no continente foram se extinguindo, e
ainda mais após os conflitos dinásticos que colocar as casas de Lancaster e
York em conflito durante os últimos 50 anos daquele Século XV. A França, por
sua vez, transforou Joana d´Arc (a arqui inimiga dos ingleses) primeiro em
heroína, depois em santa, e na Padroeira da Nação (não sem antes passar pela
fogueira com a cumplicidade de notáveis e eclesiásticos do país). Desde então,
a estratégia da Inglaterra seria a de descansar a reorganizar o contragolpe
insular com respeito à Europa, sem renunciar à influência de sempre para
impedir ou dificultar o cenário em que uma potência possa chegar a acumular
tanto poder para dominar o continente. De forma complementária, o desenho
exigia a consolidação do predomínio nas ilhas britânicas (conquista da Irlanda,
controle da Escócia) e a busca do seu destino em ultramar – aproveitando os
oceanos abertos diante das costas ocidentais –, com um poderoso império marítimo.
Enrique VIII cimentou
as bases desta política britânica, de costas para o continente e protegida
atrás do Canal da Mancha e do Mar do Norte. Assim, de pode entender, entre
outras cosas, a ruptura com as autoridades eclesiásticas de Roma e a criação de
uma igreja nacional inglesa (em 1534) – o que parecia um desafio de grande
envergadura e à pretensão de unidade religiosa e política, com uma única Igreja
(a Romana) e um só imperador (fossem eles reis “católicos”, como os hispânicos,
“cristianíssimos”, como os monarcas franceses, imperadores do Sacro Império
Romano-Germânico ou imperadores novíssimos como Napoleão…). Dessa forma foram
forjadas a identidade nacional inglesa e a construção institucional do Reino
Unido. Durante quinhentos anos, não houve mais invasões. Pelo contrário, o
sentido dos movimentos se inverteu. Os britânicos se expandiram por todo o
planeta com seus exércitos, seus negócios e seus imigrantes colonizadores.
A Inglaterra, entre os
séculos XVI e XIX, quando não está guerra contra a Áustria, está contra a
França, ou contra ambas ao mesmo tempo. As duas conflagrações mundiais da
Primeira metade do Século XX modificaram sua política de alianças, quando o
inimigo a vencer são os “impérios” germânicos e a França é um sócio inevitável,
e cada vez menos poderoso. Sempre “controlando” o que sucede no continente…
A temida – e derrotada – invasão da Invencível Armada, em1588, funciona como metáfora dos medos da sociedade britânica. A intentona fracassada dos alemães em 1941 também foi atualizada no imaginário popular, com o brexit coincidindo com uma visão do poder reitor alemão sobre a União Europeia, e com uma França progressivamente mais impotente.
A temida – e derrotada – invasão da Invencível Armada, em1588, funciona como metáfora dos medos da sociedade britânica. A intentona fracassada dos alemães em 1941 também foi atualizada no imaginário popular, com o brexit coincidindo com uma visão do poder reitor alemão sobre a União Europeia, e com uma França progressivamente mais impotente.
O princípio e o final de uma amizade com
direito a rusgas
Quando foi assinado o
Tratado de Roma, em 25 de março de 1957, criando-se assim a Comunidade
Econômica Europeia, o Reino Unido ainda era um poderoso e orgulhoso império.
Havia perdido a “joia” hindu há pouco tempo, entre outras colônias importantes,
mas a bandeira da Union Jack seguia flamulando em todos os continentes.
Somente em 1963, quando era governado pelo conservador Harold Macmillan, o Reino Unido solicitou sua entrada no clube europeu. Seu império estava se desvanecendo: em 1960, se independizaram Nigéria, Camarões e Chipre, no ano seguinte foi a vez de Serra Leoa e Tanganica (atual Tanzânia), Uganda em 1962, Quênia e Zanzibar (hoje parte da Tanzânia) em 1963… Mas a França de De Gaulle vetou sua incorporação.
Em 1967, quando o primeiro-ministro era o trabalhista Harold Wilson, o Reino Unido insistiu em ver como De Gaulle rechaçava de novo a sua petição. Assim, continuaram perdendo colônias – Malta e Zâmbia em 1964, Gâmbia em 1965…
Somente em 1963, quando era governado pelo conservador Harold Macmillan, o Reino Unido solicitou sua entrada no clube europeu. Seu império estava se desvanecendo: em 1960, se independizaram Nigéria, Camarões e Chipre, no ano seguinte foi a vez de Serra Leoa e Tanganica (atual Tanzânia), Uganda em 1962, Quênia e Zanzibar (hoje parte da Tanzânia) em 1963… Mas a França de De Gaulle vetou sua incorporação.
Em 1967, quando o primeiro-ministro era o trabalhista Harold Wilson, o Reino Unido insistiu em ver como De Gaulle rechaçava de novo a sua petição. Assim, continuaram perdendo colônias – Malta e Zâmbia em 1964, Gâmbia em 1965…
Por fim, em 1 de
janeiro de 1973, o conservador Edward Heath conseguiu ratificar o ingresso do
país no bloco. O referendo de 1975, para conhecer a opinião dos cidadãos sobre
o tema, teve como resultado um 67% de votos afirmativos. É claro que os
britânicos já aplicavam, naquele então, um padrão democrático para resolver
suas grandes questões internas. A paz assinada na Irlanda do Norte, o referendo
escocês e a consulta do brexit são provas renovadas disso.
Quando o Tratado de
Maastrich (1992) modifica a CEE, que passa a se chamar simplesmente Comunidade
Europeia, e logo, no ano seguinte, se torna União Europeia, o Reino Unido já
havia perdido o seu império colonial quase todo, mas soube criar uma nova
figura em seu lugar, a Comunidade de Nações (a Commonwealth), para manter, com
ela, uma notável influência econômica e política, com sua monarca mantendo essa
posição sobre muitas das nações independizadas – como a Austrália, o Canadá e a
Nova Zelândia… É o grande trunfo que o Reino Unido possui agora, além das suas
excepcionais relações com os Estados Unidos.
Os britânicos pensavam
que seriam muito felizes na Europa dos mercadores, que tanta prosperidade
anunciava. Mas esta se converteu numa união política, contraditória com os
quinhentos anos mais importantes de sua história. Quando a amizade com “direito
a rusgas” e sem excessivos compromissos (o Mercado Comum) se tornou um projeto
matrimonial cada vez mais irreversível, se ativaram os alarmes, e a geografia e
a história pediram a palavra.
Os resultados do
referendo eram para validar se prevalecia a geopolítica do longo período entre
1453 e 1975 (sua história sobre o pano de fundo da brecha defensiva do Canal da
Mancha e do Mar do Norte) ou o tímido golpe de timão dos últimos 41 anos, que
impulsava o Reino Unido na direção do continente. Parece que a geografia se
vingou e a estrada-túnel foi inundada. O Mar do Norte, o Canal da Mancha e a
história de quinhentos anos impuseram sua lógica geopolítica. O sonho da
prosperidade crescente se perdeu, e o preço político e social a se pagar para
muitos não compensa. Assim, o brexit terminou ganhando.
É inquietante ver que
os candidatos mais citados pelos especialistas para emular o caminho tomado
pelo Reino Unido sejam França, Holanda e Dinamarca. Todos eles antigos aliados
dos britânicos nas duas guerras mundiais. Terá a Alemanha, e outras dimensões
geopolíticas européias, algo a ver com o que está acontecendo agora?
Ricardo Romero de Tejada
Collado é cientista político e sociólogo. Foi diretor de estudos sociopolíticos
e de opinião no Instituto Gallup.
Tradução: Victor
Farinelli