Uma das maiores
estiagens da história, somada a problemas estruturais no sistema de
abastecimento de água, atormenta moradores da maior cidade da América do Sul.
Mais da metade dos moradores de São Paulo ficou sem água em casa em algum
momento do último mês – e, na segunda-feira (20/10), o sistema Cantareira, que
abastece a metrópole, baixou para o menor nível de sua história: está com 3,5% da
capacidade de armazenamento.
Enquanto paulistanos
penam guardando água em baldes e limitam o consumo ao mínimo, buscam entender o
que houve. O doutor em planejamento
urbano e professor da Universidade Federal da São Carlos (Ufscar) Marcelo
Vargas relaciona os motivos que geraram a crise hídrica em São Paulo e as
consequências da escassez d´água.
Quais
são as causas do desabastecimento em São Paulo?
A falta de água na
Grande São Paulo tem causas conjunturais e estruturais. Em termos conjunturais,
o último verão, que normalmente se caracteriza como uma estação de chuvas foi
um dos mais secos e quentes da história não apenas na região da capital e seu
entorno, mas também em grande parte do sudeste, especialmente em Minas Gerais e
no Vale do Piracicaba, de onde vem a maior parte da água que abastece a região
metropolitana, através do Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de
quase metade da população da metrópole.
Essa estiagem severa
permaneceu nos meses seguintes, quando há naturalmente menos chuvas na região.
Com pouca chuva e maior consumo, devido ao calor, os rios e represas que
abastecem o Sistema Cantareira caíram ao menor nível já registrado desde 1930.
E
em termos estruturais?
A própria dependência
da Grande São Paulo do sistema Cantareira revela as dimensões estruturais do
problema. São Paulo é uma metrópole mal localizada: a maior parte dos seus
quase 20 milhões de habitantes mora na região de cabeceiras do rio Tietê, na
bacia hidrográfica do Alto Tietê, onde o rio tem menos água do que no seu
curso. Assim, a disponibilidade de água per capita desta bacia é de apenas 200
m³ por ano por pessoa.
De acordo com a ONU,
uma região enfrenta uma situação de estresse hídrico quando apresenta uma
disponibilidade de água anual inferior a 1.700 m³ per capita. Abaixo de 1.000
m³ por pessoa por ano já caracteriza uma situação de grave escassez. Para
complicar, há 5 milhões de pessoas na bacia dos rios Piracicaba, Capivari e
Jundiaí, que também dependem das águas represadas no sistema Cantareira.
Quais
são as consequências para a população?
As consequências são a
falta d'agua para as atividades domésticas e comerciais de muitos estabelecimentos
durante horas ou mesmo dias seguidos, sobretudo nas regiões mais altas e
afastadas dos centros onde se faz a reserva, o que pode gerar desconforto, problemas
econômicos e de saúde.
O
que poderia ter sido feito, em âmbito estadual, para que a situação não
chegasse a esse ponto?
A Sabesp deveria ter
investido em novos sistemas de produção de água potável que captassem água de
outros mananciais regionais, para diminuir sua dependência do Sistema
Cantareira, como estava previsto desde 2004, quando foi renovada a licença
federal que a companhia estadual de saneamento obteve em 1974 para construir e
operar o sistema, que lhe permite retirar até 31m³ por segundo da bacia do
Piracicaba. Essa foi uma das condições para a renovação da licença, concedida
pela Agência Nacional de Águas (ANA), cuja validade se encerrava em agosto
deste ano.
Porém, com a crise
provocada pela grave estiagem deste ano, as negociações para a renovação desta
licença foram suspensas, e a outorga dos diretos de uso desta água (o nome técnico
desta licença) obtida pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São
Paulo (Sabesp) em 2004 foi provisoriamente renovada por mais um ano. A Sabesp e
outros órgãos estaduais fizeram diversos estudos de diferentes alternativas,
mas há apenas um sistema produtor de água potável sendo construído, o Sistema
São Lourenço, que capta água no Vale do Ribeira (sul de SP), cujas obras estão
atrasadas e só devem ser concluídas em 2016.
Em
âmbito nacional, alguma medida poderia ter diminuído o problema?
Os rios e represas que
abastecem o Sistema Cantareira são águas de domínio da União, pois banham mais
de um Estado, uma vez que as nascentes destes rios estão em território mineiro.
Isso faz com que a Sabesp, companhia de saneamento básico do Estado de São Paulo,
dependa de autorização federal para captar e "exportar" estas águas
para a região metropolitana da capital.
A Agência Nacional de
Águas tem se articulado com os comitês de bacia hidrográfica do Alto Tietê e do
Piracicaba, com a Sabesp e o Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado
de SP (DAEE) para administrar essa crise. Mas não caberia à Agência Nacional de
Águas, creio intervir no planejamento da Sabesp e dos órgãos estaduais.
E
para afastar as chances de este problema voltar, no futuro, o que deve ser
feito?
Não creio que haja
apenas uma linha de ação a ser tomada, mas várias. Certamente será preciso
investir em novos sistemas de produção de água que busquem mananciais alternativos
no vale do Paraíba, na Baixada Santista e noutras regiões vizinhas da
metrópole, como preveem diversos estudos. Também é necessário interligar estes
sistemas, para que haja mais flexibilidade na transposição de águas de
reservatórios mais cheios para os mais vazios.
Será preciso ainda
educar a população e as empresas para racionalizar o uso da água, com multas ou
tarifas mais altas durante períodos de escassez, educação ambiental e uso de
equipamentos mais eficientes, que evitem desperdícios. Também é preciso
aumentar a eficiência operacional da Sabesp, que ainda apresenta índices
elevados de perdas (cerca de 20% da água produzida se perde em vazamentos),
além de investir em tecnologias de reutilização da água.