Um estudo publicado pela
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em
inglês) no dia 29 de abril de 2016 mostrou que a produção mundial de alimentos
é suficiente para suprir a demanda das 7,3 bilhões de pessoas que habitam a
Terra. Apesar disso, aproximadamente uma em cada nove dessas pessoas ainda vive
a realidade da fome.
A pesquisa põe em xeque toda a política internacional de combate à
subnutrição crônica colocada em prática nas últimas décadas. Em vez de
crescimento da produção e ajudas momentâneas, surge agora como caminho uma
abordagem territorial, que valorize e potencialize a produção local.
Embora os números absolutos estejam caindo, o tema ainda é um dos mais
delicados da agenda internacional. A questão é tão antiga quanto complexa, e se
conecta intrinsecamente com a estrutura política e econômica sobre a qual o
sistema internacional está construído.
Concentração da renda e da produção falta de vontade política e até
mesmo desinformação e consolidação de uma cultura alimentar pouco nutritiva são
fatores que compõe o cenário da fome e desnutrição no planeta. Entenda abaixo
as questões que envolvem o tema.
QUAIS são as definições para fome?
Existem diferentes estados de
insuficiência alimentar categorizados, e todos eles afetam tanto o desenvolvimento
daqueles atingidos quanto da sociedade e da economia do país. Essa é a
classificação feita pela FAO, principal organização internacional a
tratar do tema.
INSEGURANÇA ALIMENTAR - Situação de quem não tem garantia de
acesso a quantidades suficientes de comida saudável e nutritiva para seu
desenvolvimento normal. Causada pela inexistência de comida à disposição, falta
de poder aquisitivo para a compra de alimentos ou uso inadequado da comida em casa.
Pode ser crônica, temporária ou transitória.
MÁ NUTRIÇÃO - Condição fisiológica anormal, causada por consumo
inadequado de nutrientes. Inclui desnutrição.
DESNUTRIÇÃO - Condição de absorção deficiente de nutrientes
causada por repetidas doenças infecciosas.
SUBNUTRIÇÃO - Estado de incapacidade em obter comida suficiente
para atingir os níveis mínimos de energia necessários para uma vida saudável e
ativa.
FOME - Termo sinônimo de subnutrição crônica, ou seja, quando o estado de
subnutrição dura por mais de um ano.
Algumas ondas de fome
ÍNDIA (1783)
Um dos maiores exemplos históricos de ondas de fome causadas por fatores
naturais. O El Niño - fenômeno natural que muda as temperaturas do oceano,
causando alterações climáticas ao redor do mundo - fez com que os anos de 1783
e 84 fossem excepcionalmente gelados no norte da Índia, causando a destruição
das plantações e matando milhões de pessoas. Somando os mortos com a onda de
fome que abateu o sul do país dois anos antes, a quantidade total chega a 11
milhões.
IRLANDA (1845)
A chegada de um fungo proveniente
das Américas destruiu as plantações de batata do país por cinco anos seguidos.
Um terço dos irlandeses dependiam do tubérculo como base de sua alimentação. A
destruição das fazendas, combinada ao bloqueio comercial imposto pela
Inglaterra, que impedia os irlandeses de importar comida, gerou pelo menos um
milhão e meio de mortos (um oitavo de toda a população) e dois milhões de
imigrantes.
CHINA (1958)
Tabu até hoje, o período é conhecido no país como “os três anos de dificuldade”.
Durante o projeto político “Grande Salto Adiante”, do governo Mao Tsé-Tung,
fazendas passaram para as mãos do Estado, e a mão-de-obra foi realocada. Isso,
combinado a questões climáticas, fez com que a produção fosse insuficiente para
toda a população chinesa. As mortes aconteceram em praticamente todas as
províncias do país, e historiadores calculam que a fome matou por volta de 36
milhões de pessoas.
COREIA DO NORTE (1994)
Kim Jong Il assume o país na Guerra Fria e dá prosseguimento à política de destinar
a produção de alimentos ao exército e à população da capital Pyongyang, sua
base política. Em 1995, chuvas torrenciais destroem 15% das fazendas do país. A
população rural entra em guerra com o governo, que é obrigado a pedir ajuda
humanitária internacional. A situação dura até 1998. O saldo de mortos pela
fome ficou em torno de três milhões de adultos - não se sabe o número exato de
crianças.
COMO está a fome no mundo hoje
As últimas décadas
foram de grande evolução no combate à fome em escala global. Nos últimos 25
anos, 7,7% da população mundial superou o problema, o que representa 216
milhões de pessoas. É como se mais que toda a população brasileira saísse da
subnutrição em menos de três décadas. Contudo, 10,8% do mundo ainda vive sem
acesso a uma dieta que forneça o mínimo de calorias e nutrientes necessários
para uma vida saudável, e 21 mil pessoas morrem diariamente por fome ou
problemas derivados dela.
A DIVISÃO ENTRE PAÍSES RICOS E POBRES
Na década de 1960, o mundo passou por um aumento populacional inédito devido
à brusca queda na taxa de mortalidade, gerando preocupações sobre a capacidade
dos países em produzir comida para todos. A solução encontrada foi de
desenvolver tecnologia e métodos que aumentassem a produção.
Em 1981, o indiano ganhador do Prêmio Nobel de economia, Amartya Sen, em
seu livro “Pobreza e Fomes”,
identifica a existência de populações com fome mesmo em países que não convivem
com problemas de abastecimento. O economista indiano traçou então, pela
primeira vez, uma relação causal entre a fome e questões sociais - como pobreza
e concentração de renda. Tirou, assim, o foco de aspectos técnicos e mudou o
tom do debate internacional sobre a questão e as políticas públicas a serem
tomadas a partir daí.
Duas metas mundiais, que foram traçadas nas últimas décadas em programas
de combate a fome, venceram em 2015. Em 1996, a World Food Summit, sediada em Roma e com a
participação de 182 países, estabeleceu o objetivo de “reduzir o número de
pessoas desnutridas pela metade do nível [de 1996] no máximo até 2015”. A meta
era ter hoje 515 milhões de pessoas passando fome. Mas ela não foi atingida, e
atualmente há 795 milhões de pessoas nessa situação.
O outro objetivo faz parte das Metas
do Milênio da ONU, desenvolvidas em 2000 e assinadas em 2001. Se
comprometia a reduzir, também pela metade, a porcentagem de pessoas com fome no
mundo, tendo como base o período de 1990 a 1992. Nesse caso, a meta também não
foi atingida: o índice era para estar em 9,3% da população mundial, mas ainda
está em 10,8%.
Com a exceção do Oeste Asiático, todas as regiões foram capazes de
diminuir a fome em alguma medida desde que as Metas do Milênio foram traçadas.
Grandes contrastes, contudo, ainda permanecem: a América Latina conseguiu
atingir um nível de fome inferior a 5%, mas Oceania, Caribe, África Subsaariana
e Sudoeste Asiático não conseguiram reduzir pela metade sua população com fome.
O QUE acontece com a comida produzida
A produção mundial de
alimentos é largamente superior à demanda, mas acaba sendo, em grande parte,
desperdiçada. O gráfico abaixo mostra como o crescimento da produção calórica
mundial cresceu nas últimas duas décadas, atingindo a marca de 123% da
necessidade per capita atual.
PRODUÇÃO
Contudo, de acordo com a FAO, um terço de toda a comida produzida
anualmente (em torno de 1,3 bilhões de toneladas) não é consumida. De tudo o
que é jogado fora, apenas 25% já seria suficiente para abastecer a população
com fome.
Duas formas de a comida ir para o lixo
PERDA
Comida
que acaba indo para o lixo antes de chegar ao consumidor final. Muitas vezes,
ela nem chega ao fim do processo de produção, apodrecendo antes. As perdas
sempre ocorrem sem intenção.
DESPERDÍCIO
São os casos em que a comida passou por todo o processo de produção em
condições perfeitas para consumo, mas acabou sendo jogada no lixo, por
vendedores ou consumidores.
A quantidade de comida não consumida é parecida entre os países
desenvolvidos e as regiões em desenvolvimento. Nos países ricos, 670 milhões de
toneladas vão para o lixo anualmente, enquanto nos países mais pobres, essa
quantidade é de 630 milhões. Deve ser levado em consideração, contudo, que a
população dos países em desenvolvimento é bem maior.
Se o calculo for feito per capita, a diferença é latente: segundo a FAO,
europeus e norte-americanos jogam, por pessoa, de 95 a 115 quilos de comida no
lixo todo ano. Na África subsaariana e no Sul e Sudeste Asiático, a média por
pessoa é de apenas seis a 11 quilos.
A forma como essa comida é descartada também apresenta profundas
diferenças. Mais de 40% dos casos nos países ricos entram na categoria de desperdício,
ou seja, o alimento estava em perfeitas condições quando foi descartado. Já em
países mais pobres, isso acontece em menos de 5% dos casos.
Os números mostram, portanto, que países ricos têm maior tendência a
jogar comida fora, mesmo estando em perfeitas condições de uso, e convivem com
poucas perdas. Já nos mais pobres ocorre o inverso, muita comida vai pro lixo
por problemas ao longo do sistema de produção e transporte, mas as pessoas
aproveitam quase todo o alimento que chegam até elas.
COMO VAI PRO LIXO
Segundo Robert van Otterdijk, oficial da FAO
para a Agroindústria, há uma relação clara entre a renda e a atitude de um
indivíduo com a comida própria para consumo. Isso afetaria diretamente o acesso
das populações mais pobres à produção alimentícia.
Segundo as Nações Unidas, o primeiro passo para evitar o desperdício é
que as pessoas reduzam o consumo, ou seja, comprem apenas o que for necessário
para uma dieta saudável. Depois, reutilizem o alimento que ainda tem condições
de consumo, o que serve tanto para compradores quanto vendedores, que descartam alimentos consumíveis por
apresentarem aparência física pouco atrativa. Além disso, a reciclagem - como a
utilização de alimentos para animais - e a otimização da utilização do solo são
outros pontos que precisam ser trabalhados.
US$750 bilhões é o valor de produção da comida não
aproveitada anualmente
US$1 trilhão é o valor em preços de mercado - equivalente
a duas vezes o PIB da Noruega
QUEM são os mais
atingidos pela fome
A fome atinge principalmente as
populações mais pobres, já que está relacionada às desigualdades econômicas e
sociais nas mais diferentes escalas - de global a regional. Entre a população
com fome, contudo, as crianças constituem um grupo ainda mais vulnerável.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, 11% das crianças
com menos de 5 anos em todo o mundo estão abaixo do peso ideal. Como reflexo,
66 milhões delas vão à escola com fome, sendo que 23 milhões estão na África.
Além disso, outras 67 milhões de criançasem
idade escolar não frequentam as aulas, reflexo da pobreza familiar, que as
força a trabalhar para ajudar na renda de casa.
A situação das crianças é, em parte, decorrência do que ocorre com suas
mães: 60% da população mundial que sofre com a fome é mulher. Apesar de
representarem 43% da mão de obra rural mundial, as mulheres têm acesso restrito
ao controle de terras e animais em todas as regiões do mundo. Não conseguem
acesso a sementes melhores e fertilizantes, além de encontrarem muito mais
dificuldades em conseguir financiamentos para suas lavouras.
O machismo na produção agropecuária faz com que a produção feminina
seja, em média, 25% menor do que a masculina.
Como reflexo desse quadro, aproximadamente metade das mulheres grávidas
de países em desenvolvimento apresentam anemia, gerando 110 mil mortes durante
o parto todos os anos. Além disso, bebês que nascem abaixo do peso são 20% mais
suscetíveis a falecerem antes dos 5 anos, segundo a WFP,
instituição internacional para combate à fome ligada à ONU.
Haiti, Zâmbia, República da África Central, Namíbia e Coreia do Norte
são os países proporcionalmente mais atingidos pelo problema, com mais de 35%
de suas populações com fome. O Sudoeste Asiático e a África Subsaariana são as
regiões do planeta com a maior população com subnutrição crônica, somando
juntas aproximadamente 500 milhões de pessoas.
POR QUE as políticas não funcionaram e precisaram mudar
As políticas de combate à fome,
adotadas até aproximadamente o início da década, focaram sobretudo na ajuda
emergencial e no aumento da produção. Ou seja, acreditava-se que para acabar
com a subnutrição, bastava, primordialmente, produzir mais e levar comida a
populações com fome.
Depois que as metas traçadas não foram alcançadas, organizações que
lidam com o tema entenderam que era necessário criar ações permanentes e
estruturais. Surgiram então dois aspectos principais.
Um trata do principal motivo: a pobreza. A comida não chega a quem
precisa porque, na maioria dos casos, as pessoas não têm dinheiro para
comprá-la. Seja nos países mais pobres ou nos mais ricos, pessoas têm
dificuldades em conseguir alimentos por serem economicamente excluídas, e não
porque não tem comida suficiente.
Uma criança que vive numa favela do Rio de Janeiro, por exemplo, está
mais suscetível a passar fome e conviver com a insegurança alimentar do que uma
outra criança que mora em um condomínio de luxo, a três quarteirões de
distância. Se a comida chega pra uma, também chega pra outra. A diferença é que
uma pode comprá-la, mas a outra não.
O outro aspecto tem a ver com a forma de desenhar políticas em escala
global. É a territorialidade. Isso
significa que as organizações entenderam que o combate à fome tem que ser feito
levando em conta questões específicas de cada lugar. Pessoas em cidades não
passam fome pelos mesmos motivos que pessoas do campo.
A primeira pode sofrer com falta de acesso a supermercados mais baratos,
pois o transporte público é ineficiente, por exemplo; a outra, porque não tem
acesso a grãos para plantar para sua família, ou porque os animais que cria não
ganham peso. As políticas, para cada um desses casos, tem que ser diferente:
transporte público de qualidade e incentivos a redes de supermercados mais
acessíveis na cidade, e distribuição de grãos e programas de educação
agropecuária para a população rural.
NO BRASIL: o que foi feito para sairmos do mapa da fome
No ano de 2014 o Brasil saiu,
pela primeira vez, do mapa da fome divulgado
pela FAO. O avanço, segundo as Nações Unidas, foi resultado de uma ação
coordenada que agiu em diversas esferas da realidade social posta.
“A visão da FAO é
de que uma ampla gama de medidas integradas são necessárias, incluindo
‘proteção social’ e programas de transferência de dinheiro como na linha do
Bolsa Família. Como são muitas coisas que devem ser feitas, e elas devem ser
coerentes, o elemento mais importante é ‘vontade política no nível mais alto’,
ou seja, comprometimento dos governos nacionais” FAO
A ONU destaca a importância de programas sociais como o “Bolsa Família”,
sobretudo porque permitiram uma maior integração das mulheres na atividade
econômica - no caso do “Bolsa Família”, é a mulher quem recebe o benefício.
A FAO ressalta em seu relatório que “em
muitos casos os efeitos positivos do crescimento econômico na segurança
alimentar e na nutrição estão relacionados à maior participação feminina na
força de trabalho. No Brasil, por exemplo, a participação das mulheres aumentou
de 45% em 1990-94 para 60% em 2013”.
A RELAÇÃO ENTRE POBREZA E SUBNUTRIDOS
José Graziano da Silva, agrônomo, professor brasileiro e um dos
principais responsáveis por elaborar o programa “Fome Zero”, implantado em
2003, é Secretário-Geral da FAO desde junho de 2011.
Em uma publicação organizada
por Graziano para o Ministério do Desenvolvimento Agrário em 2010, o então
presidente Luiz Inácio Lula da Silva ressalta que o desenvolvimento do “Fome
Zero” se deu pelo Instituto Cidadania ao lado de “ONGs, institutos de
pesquisas, sindicatos, organizações populares, movimentos sociais e
especialistas ligados à questão da segurança alimentar de todo o Brasil”,
conforme recomendam as organizações internacionais.
O esquema de organização das políticas de combate à miséria se deu em
três níveis: estruturais, específicas e locais. Segundo relatório do Banco Mundial,
o número de brasileiros vivendo com menos de U$ 2,5 dólares (cerca de R$ 8) por
dia caiu de 10% para 4% entre 2001 e 2013.
Estratégia para vencer a fome no Brasil
POLÍTICAS ESTRUTURAIS
As políticas estruturais estão relacionadas a ações mais dispersas, com
o objetivo de melhorar a política social como um todo do país e diminuir a
desigualdade econômica. Fazem parte disso políticas de geração de emprego,
reforma agrária, políticas de incentivo à agricultura familiar, uma previdência
social universal e programas de transferência de renda, como o “Bolsa Família”.
POLÍTICAS ESPECÍFICAS
São aquelas destinadas diretamente a assuntos relacionados à garantia de
que as pessoas terão comida, mas ainda são políticas gerais, levadas a todas as
regiões do país nos mesmos moldes. Fazem parte das políticas específicas ações
como doação de cestas básicas emergenciais, manutenção de estoques emergenciais
de comida, educação de consumo de alimentos, ampliação de merenda escolar,
entre outros.
POLÍTICAS LOCAIS
São as políticas desenhadas de maneiras diferentes para ambientes e
populações diferentes. É o tipo inverso das políticas “de baixo para cima”
citadas anteriormente como o modelo desaconselhado pelas organizações
internacionais. A diferenciação se deu entre áreas rurais, áreas urbanas
pequenas ou médias, e metrópoles, com ações desenhadas para cada um desses
tipos de organização social.
FONTE: Nexo