quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Mundo produz comida suficiente, mas fome ainda é uma realidade

Um estudo publicado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) no dia 29 de abril de 2016 mostrou que a produção mundial de alimentos é suficiente para suprir a demanda das 7,3 bilhões de pessoas que habitam a Terra. Apesar disso, aproximadamente uma em cada nove dessas pessoas ainda vive a realidade da fome.
A pesquisa põe em xeque toda a política internacional de combate à subnutrição crônica colocada em prática nas últimas décadas. Em vez de crescimento da produção e ajudas momentâneas, surge agora como caminho uma abordagem territorial, que valorize e potencialize a produção local.
Embora os números absolutos estejam caindo, o tema ainda é um dos mais delicados da agenda internacional. A questão é tão antiga quanto complexa, e se conecta intrinsecamente com a estrutura política e econômica sobre a qual o sistema internacional está construído.
Concentração da renda e da produção falta de vontade política e até mesmo desinformação e consolidação de uma cultura alimentar pouco nutritiva são fatores que compõe o cenário da fome e desnutrição no planeta. Entenda abaixo as questões que envolvem o tema.
QUAIS são as definições para fome?
            Existem diferentes estados de insuficiência alimentar categorizados, e todos eles afetam tanto o desenvolvimento daqueles atingidos quanto da sociedade e da economia do país. Essa é a classificação feita pela FAO, principal organização internacional a tratar do tema.
INSEGURANÇA ALIMENTAR - Situação de quem não tem garantia de acesso a quantidades suficientes de comida saudável e nutritiva para seu desenvolvimento normal. Causada pela inexistência de comida à disposição, falta de poder aquisitivo para a compra de alimentos ou uso inadequado da comida em casa. Pode ser crônica, temporária ou transitória.
MÁ NUTRIÇÃO - Condição fisiológica anormal, causada por consumo inadequado de nutrientes. Inclui desnutrição.
DESNUTRIÇÃO - Condição de absorção deficiente de nutrientes causada por repetidas doenças infecciosas.
SUBNUTRIÇÃO - Estado de incapacidade em obter comida suficiente para atingir os níveis mínimos de energia necessários para uma vida saudável e ativa.
FOME - Termo sinônimo de subnutrição crônica, ou seja, quando o estado de subnutrição dura por mais de um ano.

Algumas ondas de fome

ÍNDIA (1783)
Um dos maiores exemplos históricos de ondas de fome causadas por fatores naturais. O El Niño - fenômeno natural que muda as temperaturas do oceano, causando alterações climáticas ao redor do mundo - fez com que os anos de 1783 e 84 fossem excepcionalmente gelados no norte da Índia, causando a destruição das plantações e matando milhões de pessoas. Somando os mortos com a onda de fome que abateu o sul do país dois anos antes, a quantidade total chega a 11 milhões.
IRLANDA (1845)
chegada de um fungo proveniente das Américas destruiu as plantações de batata do país por cinco anos seguidos. Um terço dos irlandeses dependiam do tubérculo como base de sua alimentação. A destruição das fazendas, combinada ao bloqueio comercial imposto pela Inglaterra, que impedia os irlandeses de importar comida, gerou pelo menos um milhão e meio de mortos (um oitavo de toda a população) e dois milhões de imigrantes.
CHINA (1958)
Tabu até hoje, o período é conhecido no país como “os três anos de dificuldade”. Durante o projeto político “Grande Salto Adiante”, do governo Mao Tsé-Tung, fazendas passaram para as mãos do Estado, e a mão-de-obra foi realocada. Isso, combinado a questões climáticas, fez com que a produção fosse insuficiente para toda a população chinesa. As mortes aconteceram em praticamente todas as províncias do país, e historiadores calculam que a fome matou por volta de 36 milhões de pessoas.
COREIA DO NORTE (1994)
Kim Jong Il assume o país na Guerra Fria e dá prosseguimento à política de destinar a produção de alimentos ao exército e à população da capital Pyongyang, sua base política. Em 1995, chuvas torrenciais destroem 15% das fazendas do país. A população rural entra em guerra com o governo, que é obrigado a pedir ajuda humanitária internacional. A situação dura até 1998. O saldo de mortos pela fome ficou em torno de três milhões de adultos - não se sabe o número exato de crianças.
COMO está a fome no mundo hoje
            As últimas décadas foram de grande evolução no combate à fome em escala global. Nos últimos 25 anos, 7,7% da população mundial superou o problema, o que representa 216 milhões de pessoas. É como se mais que toda a população brasileira saísse da subnutrição em menos de três décadas. Contudo, 10,8% do mundo ainda vive sem acesso a uma dieta que forneça o mínimo de calorias e nutrientes necessários para uma vida saudável, e 21 mil pessoas morrem diariamente por fome ou problemas derivados dela.
A DIVISÃO ENTRE PAÍSES RICOS E POBRES

         Na década de 1960, o mundo passou por um aumento populacional inédito devido à brusca queda na taxa de mortalidade, gerando preocupações sobre a capacidade dos países em produzir comida para todos. A solução encontrada foi de desenvolver tecnologia e métodos que aumentassem a produção.
Em 1981, o indiano ganhador do Prêmio Nobel de economia, Amartya Sen, em seu livro “Pobreza e Fomes”, identifica a existência de populações com fome mesmo em países que não convivem com problemas de abastecimento. O economista indiano traçou então, pela primeira vez, uma relação causal entre a fome e questões sociais - como pobreza e concentração de renda. Tirou, assim, o foco de aspectos técnicos e mudou o tom do debate internacional sobre a questão e as políticas públicas a serem tomadas a partir daí.
Duas metas mundiais, que foram traçadas nas últimas décadas em programas de combate a fome, venceram em 2015. Em 1996, a World Food Summit, sediada em Roma e com a participação de 182 países, estabeleceu o objetivo de “reduzir o número de pessoas desnutridas pela metade do nível [de 1996] no máximo até 2015”. A meta era ter hoje 515 milhões de pessoas passando fome. Mas ela não foi atingida, e atualmente há 795 milhões de pessoas nessa situação. 
O outro objetivo faz parte das Metas do Milênio da ONU, desenvolvidas em 2000 e assinadas em 2001. Se comprometia a reduzir, também pela metade, a porcentagem de pessoas com fome no mundo, tendo como base o período de 1990 a 1992. Nesse caso, a meta também não foi atingida: o índice era para estar em 9,3% da população mundial, mas ainda está em 10,8%.
Com a exceção do Oeste Asiático, todas as regiões foram capazes de diminuir a fome em alguma medida desde que as Metas do Milênio foram traçadas. Grandes contrastes, contudo, ainda permanecem: a América Latina conseguiu atingir um nível de fome inferior a 5%, mas Oceania, Caribe, África Subsaariana e Sudoeste Asiático não conseguiram reduzir pela metade sua população com fome.
O QUE acontece com a comida produzida
            A produção mundial de alimentos é largamente superior à demanda, mas acaba sendo, em grande parte, desperdiçada. O gráfico abaixo mostra como o crescimento da produção calórica mundial cresceu nas últimas duas décadas, atingindo a marca de 123% da necessidade per capita atual.
PRODUÇÃO

        Contudo, de acordo com a FAO, um terço de toda a comida produzida anualmente (em torno de 1,3 bilhões de toneladas) não é consumida. De tudo o que é jogado fora, apenas 25% já seria suficiente para abastecer a população com fome.
Duas formas de a comida ir para o lixo
PERDA
Comida que acaba indo para o lixo antes de chegar ao consumidor final. Muitas vezes, ela nem chega ao fim do processo de produção, apodrecendo antes. As perdas sempre ocorrem sem intenção.
DESPERDÍCIO
São os casos em que a comida passou por todo o processo de produção em condições perfeitas para consumo, mas acabou sendo jogada no lixo, por vendedores ou consumidores.
A quantidade de comida não consumida é parecida entre os países desenvolvidos e as regiões em desenvolvimento. Nos países ricos, 670 milhões de toneladas vão para o lixo anualmente, enquanto nos países mais pobres, essa quantidade é de 630 milhões. Deve ser levado em consideração, contudo, que a população dos países em desenvolvimento é bem maior.
Se o calculo for feito per capita, a diferença é latente: segundo a FAO, europeus e norte-americanos jogam, por pessoa, de 95 a 115 quilos de comida no lixo todo ano. Na África subsaariana e no Sul e Sudeste Asiático, a média por pessoa é de apenas seis a 11 quilos.
A forma como essa comida é descartada também apresenta profundas diferenças. Mais de 40% dos casos nos países ricos entram na categoria de desperdício, ou seja, o alimento estava em perfeitas condições quando foi descartado. Já em países mais pobres, isso acontece em menos de 5% dos casos.
Os números mostram, portanto, que países ricos têm maior tendência a jogar comida fora, mesmo estando em perfeitas condições de uso, e convivem com poucas perdas. Já nos mais pobres ocorre o inverso, muita comida vai pro lixo por problemas ao longo do sistema de produção e transporte, mas as pessoas aproveitam quase todo o alimento que chegam até elas.
COMO VAI PRO LIXO

            Segundo Robert van Otterdijk, oficial da FAO para a Agroindústria, há uma relação clara entre a renda e a atitude de um indivíduo com a comida própria para consumo. Isso afetaria diretamente o acesso das populações mais pobres à produção alimentícia.
Segundo as Nações Unidas, o primeiro passo para evitar o desperdício é que as pessoas reduzam o consumo, ou seja, comprem apenas o que for necessário para uma dieta saudável. Depois, reutilizem o alimento que ainda tem condições de consumo, o que serve tanto para compradores quanto vendedores, que descartam alimentos consumíveis por apresentarem aparência física pouco atrativa. Além disso, a reciclagem - como a utilização de alimentos para animais - e a otimização da utilização do solo são outros pontos que precisam ser trabalhados.
US$750 bilhões é o valor de produção da comida não aproveitada anualmente
US$1 trilhão é o valor em preços de mercado - equivalente a duas vezes o PIB da Noruega
QUEM são os mais atingidos pela fome

            A fome atinge principalmente as populações mais pobres, já que está relacionada às desigualdades econômicas e sociais nas mais diferentes escalas - de global a regional. Entre a população com fome, contudo, as crianças constituem um grupo ainda mais vulnerável.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, 11% das crianças com menos de 5 anos em todo o mundo estão abaixo do peso ideal. Como reflexo, 66 milhões delas vão à escola com fome, sendo que 23 milhões estão na África. Além disso, outras 67 milhões de criançasem idade escolar não frequentam as aulas, reflexo da pobreza familiar, que as força a trabalhar para ajudar na renda de casa.
A situação das crianças é, em parte, decorrência do que ocorre com suas mães: 60% da população mundial que sofre com a fome é mulher. Apesar de representarem 43% da mão de obra rural mundial, as mulheres têm acesso restrito ao controle de terras e animais em todas as regiões do mundo. Não conseguem acesso a sementes melhores e fertilizantes, além de encontrarem muito mais dificuldades em conseguir financiamentos para suas lavouras. 
O machismo na produção agropecuária faz com que a produção feminina seja, em média, 25% menor do que a masculina.
Como reflexo desse quadro, aproximadamente metade das mulheres grávidas de países em desenvolvimento apresentam anemia, gerando 110 mil mortes durante o parto todos os anos. Além disso, bebês que nascem abaixo do peso são 20% mais suscetíveis a falecerem antes dos 5 anos, segundo a WFP, instituição internacional para combate à fome ligada à ONU.
Haiti, Zâmbia, República da África Central, Namíbia e Coreia do Norte são os países proporcionalmente mais atingidos pelo problema, com mais de 35% de suas populações com fome. O Sudoeste Asiático e a África Subsaariana são as regiões do planeta com a maior população com subnutrição crônica, somando juntas aproximadamente 500 milhões de pessoas. 

POR QUE as políticas não funcionaram e precisaram mudar
            As políticas de combate à fome, adotadas até aproximadamente o início da década, focaram sobretudo na ajuda emergencial e no aumento da produção. Ou seja, acreditava-se que para acabar com a subnutrição, bastava, primordialmente, produzir mais e levar comida a populações com fome.
Depois que as metas traçadas não foram alcançadas, organizações que lidam com o tema entenderam que era necessário criar ações permanentes e estruturais. Surgiram então dois aspectos principais.
Um trata do principal motivo: a pobreza. A comida não chega a quem precisa porque, na maioria dos casos, as pessoas não têm dinheiro para comprá-la. Seja nos países mais pobres ou nos mais ricos, pessoas têm dificuldades em conseguir alimentos por serem economicamente excluídas, e não porque não tem comida suficiente.
Uma criança que vive numa favela do Rio de Janeiro, por exemplo, está mais suscetível a passar fome e conviver com a insegurança alimentar do que uma outra criança que mora em um condomínio de luxo, a três quarteirões de distância. Se a comida chega pra uma, também chega pra outra. A diferença é que uma pode comprá-la, mas a outra não.
O outro aspecto tem a ver com a forma de desenhar políticas em escala global. É a territorialidade. Isso significa que as organizações entenderam que o combate à fome tem que ser feito levando em conta questões específicas de cada lugar. Pessoas em cidades não passam fome pelos mesmos motivos que pessoas do campo.
A primeira pode sofrer com falta de acesso a supermercados mais baratos, pois o transporte público é ineficiente, por exemplo; a outra, porque não tem acesso a grãos para plantar para sua família, ou porque os animais que cria não ganham peso. As políticas, para cada um desses casos, tem que ser diferente: transporte público de qualidade e incentivos a redes de supermercados mais acessíveis na cidade, e distribuição de grãos e programas de educação agropecuária para a população rural.

NO BRASIL: o que foi feito para sairmos do mapa da fome
       No ano de 2014 o Brasil saiu, pela primeira vez, do mapa da fome divulgado pela FAO. O avanço, segundo as Nações Unidas, foi resultado de uma ação coordenada que agiu em diversas esferas da realidade social posta.
“A visão da FAO é de que uma ampla gama de medidas integradas são necessárias, incluindo ‘proteção social’ e programas de transferência de dinheiro como na linha do Bolsa Família. Como são muitas coisas que devem ser feitas, e elas devem ser coerentes, o elemento mais importante é ‘vontade política no nível mais alto’, ou seja, comprometimento dos governos nacionais” FAO
A ONU destaca a importância de programas sociais como o “Bolsa Família”, sobretudo porque permitiram uma maior integração das mulheres na atividade econômica - no caso do “Bolsa Família”, é a mulher quem recebe o benefício.
A FAO ressalta em seu relatório que “em muitos casos os efeitos positivos do crescimento econômico na segurança alimentar e na nutrição estão relacionados à maior participação feminina na força de trabalho. No Brasil, por exemplo, a participação das mulheres aumentou de 45% em 1990-94 para 60% em 2013”.
A RELAÇÃO ENTRE POBREZA E SUBNUTRIDOS

         José Graziano da Silva, agrônomo, professor brasileiro e um dos principais responsáveis por elaborar o programa “Fome Zero”, implantado em 2003, é Secretário-Geral da FAO desde junho de 2011.
Em uma publicação organizada por Graziano para o Ministério do Desenvolvimento Agrário em 2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva ressalta que o desenvolvimento do “Fome Zero” se deu pelo Instituto Cidadania ao lado de “ONGs, institutos de pesquisas, sindicatos, organizações populares, movimentos sociais e especialistas ligados à questão da segurança alimentar de todo o Brasil”, conforme recomendam as organizações internacionais.
O esquema de organização das políticas de combate à miséria se deu em três níveis: estruturais, específicas e locais. Segundo relatório do Banco Mundial, o número de brasileiros vivendo com menos de U$ 2,5 dólares (cerca de R$ 8) por dia caiu de 10% para 4% entre 2001 e 2013.
Estratégia para vencer a fome no Brasil
POLÍTICAS ESTRUTURAIS
As políticas estruturais estão relacionadas a ações mais dispersas, com o objetivo de melhorar a política social como um todo do país e diminuir a desigualdade econômica. Fazem parte disso políticas de geração de emprego, reforma agrária, políticas de incentivo à agricultura familiar, uma previdência social universal e programas de transferência de renda, como o “Bolsa Família”.
POLÍTICAS ESPECÍFICAS
São aquelas destinadas diretamente a assuntos relacionados à garantia de que as pessoas terão comida, mas ainda são políticas gerais, levadas a todas as regiões do país nos mesmos moldes. Fazem parte das políticas específicas ações como doação de cestas básicas emergenciais, manutenção de estoques emergenciais de comida, educação de consumo de alimentos, ampliação de merenda escolar, entre outros.
POLÍTICAS LOCAIS

São as políticas desenhadas de maneiras diferentes para ambientes e populações diferentes. É o tipo inverso das políticas “de baixo para cima” citadas anteriormente como o modelo desaconselhado pelas organizações internacionais. A diferenciação se deu entre áreas rurais, áreas urbanas pequenas ou médias, e metrópoles, com ações desenhadas para cada um desses tipos de organização social.
FONTE: Nexo

domingo, 9 de outubro de 2016

REAPROXIMAÇÃO ENTRE CUBA E ESTADOS UNIDOS

O dia 17 de dezembro de 2014, os Estados Unidos da América (EUA) e Cuba tornaram públicas suas intenções de reaproximação diplomática. O anúncio desse começo de abertura de relações políticas entre os dois países veio acompanhado de negociações para libertação do americano Alan Gross, em Cuba, bem como a libertação de três cubanos na Flórida (EUA), acusados de espionagem. Tanto o líder cubano, Raúl Castro, como o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, discursaram sobre o fato da libertação desses indivíduos e assinalaram a perspectiva de uma nova fase entre os dois países.
Esse acontecimento tem uma relevância notória (e, por isso mesmo, vem sendo amplamente noticiado na imprensa internacional) exatamente por terem sido publicamente declaradas as intenções de reaproximação. Contudo, a história da relação entre Cuba e EUA, desde os anos 1960 até agora, é marcada por várias contradições, tanto de um lado quanto de outro. As contradições começam logo com as investidas revolucionárias do grupo liderado por Fidel Castro, na década de 1950, contra o governo de Fulgêncio Baptista. Há já um longo debate historiográfico que esmiúça, nesse contexto, a participação dos EUA tanto em apoio às forças de Baptista quanto em eventuais auxílios aos guerrilheiros.
Ademais, no contexto da Guerra Fria, a Revolução Cubana só representou, de fato, um ícone do comunismo na América Latina quando começou a estreitar relações com a União Soviética no início dos anos de 1960. Até 1959, quando os revolucionários ocuparam Havana e empossaram Manuel Urrutia Lléo presidente — um advogado com tendências ideológicas liberais —, os rumos de uma “Cuba comunista” e de uma “luta contra o imperialismo Ianque” ainda não haviam sido plenamente traçados. Essa perspectiva só se definiu quando os irmãos Castro assumiram de fato o controle da ilha, tanto político quanto econômico e militarmente, optando pelo apoio ao bloco soviético.
Essa opção de Cuba implicava, naturalmente, rechaçar a estrutura econômica americana que havia na ilha há décadas. As “plantations” e os demais investimentos americanos em Cuba foram desapropriados ou expropriados pelo Estado comandado pelos Castro. A institucionalização de uma burocracia gerenciadora do país, estatizante e profundamente dependente da URSS, valendo-se da retórica revolucionária socialista, provocou a reação do bloco ocidental, sobretudo dos EUA, que, a partir de 1961, romperam relações diplomáticas com Cuba após o episódio da invasão da Baía dos Porcos. O momento mais crítico e tenso da Guerra Fria no que se refere à relação EUA-Cuba foi o da Crise dos Mísseis, que pode ser consultado neste link.
Com a queda do bloco soviético em 1989 e as reformas estruturais na Rússia e nos demais países, as relações entre Estados Unidos e Cuba passaram a tomar outro rumo. Cuba foi submetida à pressão de embargos econômicos na forma de duas leis principais: A Lei Torricelli, de 1992, e a Lei Helms-Burton, de 1996. Essas leis dificultavam a articulação econômica de empresas que tinham ou queriam estabelecer negócios em Cuba, já que esse país não contava mais com o auxílio soviético. Além disso, há ainda a posição dos emigrados cubanos que vivem nos EUA. Essa comunidade cubano-americana possui opiniões bastantes diversas e contundentes com relação aos embargos. Enquanto uns apoiam o seu fim, outros defendem a sua manutenção como forma de pressão para a ruína do regime instalado pelos Castro.
A partir dos anos 2000, houve uma maior flexibilidade com relação às parcerias econômicas entre Cuba e diversos outros países, incluindo o Brasil e os EUA. Recentemente, o financiamento do Porto de Mariel em Cuba pelo governo brasileiro repercutiu enormemente, sobretudo por conta de acusações em torno da obscuridade na prestação de contas de tal empreendimento. Mas o fato é que Cuba tem buscado manter-se “de pé” politicamente, segurando a moldura de um regime autoritário, ao mesmo tempo em que se articula economicamente como pode e com quem pode. A renúncia de Fidel Castro trouxe mais uma reviravolta a esse cenário, e seu irmão, que sempre foi considerado mais radical e mais ligado ao núcleo duro das Forças Armadas cubanas, vem demostrando, contraditoriamente, essa perspectiva de abertura. Essa postura talvez seja influenciada por uma articulação política que leva em conta a idade avançada tanto de Fidel quanto do próprio Raúl Castro e dos demais membros da elite dirigente de Cuba. O regime precisará ser reformado nos próximos anos; e ao que tudo indica, Raúl Castro deve estar preparando uma nova elite para isso, como acentua o pesquisador Maurício Santoro, no trecho a seguir:
“Expectativas moderadas e uma clara noção dos limites do possível podem levar à melhoria expressiva das relações entre Estados Unidos e Cuba, abrindo possibilidades positivas para o futuro imprevisível após a morte dos irmãos Castro. A ausência de uma figura pública com legitimidade comparável à dos líderes revolucionários pode criar um perigoso vácuo político, com o risco de disputas violentas pelo poder. Nesse contexto, faz sentido que Washington aposte na construção de vínculos de confiança com altos funcionários do governo cubano, nas esferas diplomática, militar e econômica, que seriam de grande valia num cenário turbulento como esse.” (SANTORO, Maurício. Cuba após a Guerra Fria: mudanças econômicas, nova agenda diplomática e o limitado diálogo com os EUA. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 53, n. 1, July, 2010. p. 138)

Ademais, é preciso ficar atento à situação atual de Cuba, às principais reivindicações da população cubana, aos motivos de haver tanta evasão do país e ao interesse que a comunidade econômica internacional, incluindo o Brasil, tem na ilha.