Escudado na proteção republicana
da toga, o ministro Gilmar Mendes desnudou uma controversa agenda política
pessoal na última semana de maio. Onipresente na obsequiosa passarela da mídia
amiga, lacrou seu caminho na 6ª feira declarando-se um caçador de blogs
adversários de suas ideias e das ideias de seus amigos. Em preocupante
equiparação entre a autoridade da toga e a arbitrariedade da língua, Gilmar
decretou serem inimigos das instituições republicanas todos aqueles que
contestam os seus malabarismos discursivos, a adequar denúncias a cada 24
horas, num exercício de convencimento à falta de testemunhas e fatos que as
comprovem.
A fragilidade desse discurso
impele-o agora ao papel de censor a exigir da Procuradoria Geral da República,
e do ministro Mantega, que sufoque blogs adversários asfixiando-os com o corte
da publicidade oficial. Sobre veículos que incluem entre suas fontes e
'colaboradores informais', notórios acusados de integrar quadrilhas do crime
organizado, o ministro nada observa em relação à presença da publicidade
oficial. Cabe ao governo Dilma dar uma resposta ao autonomeado censor da
República.
O ataque da língua togada contra
a imprensa crítica não é aleatório. O dispositivo midiático conservador vive em
andrajos de credibilidade e pautas. A semana final de maio estava marcada para
ser um desses picos de desamparo, na despedida humilhante de seu herói decaído.
E de fato o foi: em depoimento no Conselho de Ética do Senado, na 3ª feira, o
ex-líder dos demos na Casa, Demóstenes Torres, deixaria gravado no bronze dos
falsos savonarolas a lapidar confissão de que um chefe de quadrilha pagava as
contas, miúdas, observaria, de seu celular. E ele, o centurião da moralidade, a
direita linha dura assim cortejada pela língua togada e pelo aparato conservador
--quem sabe até para vôos maiores em 2014--, não viu nenhum tropeço ético nesse
pequeno mimo que elucida todo um perfil.
O fecho de carreira do tribuno
goiano contaminaria as manchetes que ele tantas vezes ancorou à direita não
fosse a providencial intervenção da língua amiga do ministro do STF, Gilmar
Mendes. Na mesma 3ª feira desde as primeiras horas da manhã, lá estava ela a
falar pelos cotovelos. Diuturnamente, contemplou a orfandade da mídia amiga
naquele dia cinzento. A cada qual ofereceu uma frase brinde para erguer a moral
da tropa e justificar a manchete com o carimbo 'exclusivo' no alto da página.
Não se poupou. O magistrado, não raro em destemperados decibéis, esfregou na
opinião pública recibos e documentos que comprovariam o pagamento, com recursos
próprios --'tenho-os para umas três voltas ao mundo'-- de seu giro europeu, em
abril de 2011, onde se encontraria com o herói decaído da linha dura,
Demóstenes Torres.
Sua língua foi peremptória em
alguns momentos, na mais pura tradição liberal que o distingue: 'Vamos parar
com essas suspeitas sobre viagens", determinou. Para depois admitir em
habilidosa antecipação: por duas vezes utilizou carona aérea do amigo Demóstenes;
por duas vezes voou sob os auspícios do amigo que não possui veículo aéreo
próprio; do amigo que não paga nem as contas de celular. Contas miúdas,
diga-se, a revelar um vínculo orgânico com a ubíqua carteira gorda de acusados
de integrar o condomínio criminoso goiano.
Gilmar estava determinado a
servir de redenção ao dispositivo midiático demotucano num dia tão aziago. Não
desapontou amigos, ainda que tenha escandalizado parte do país. Ofensivo,
execrou blogs e sites críticos -- esses sim, bandidos e gangsters-- que
arguiram e ainda arguem as fronteiras da identidade de valores que aproximou o
magistrado do senador decaído.
Fez mais ainda: acusou Lula de
ser a central de boatos contra ele para 'melar o julgamento do mensalão' --como
se o ex-presidente Lula não pudesse, não devesse ter opinião sobre fatos
relevantes da vida política nacional --prerrogativa que outras togas mais
serenas não contestam e legitimam. Ao jornal O Globo, na linha da frase à la
carte, facilitou a manchete pronta para dissolver a terça-feira de cinzas do
conservadorismo: 'O Brasil não é a Venezuela onde Chávez manda prender juiz'. O
diário retribuiu a gentileza em manchete garrafal de duas linhas no alto da
página. Um contrafogo sob medida à humilhante baixa no Senado. Incansável, a
língua foi provendo xistes e chutes a emissários de redações sedentas, mas
cometeu alguns deslizes.
Esqueceu que um pilar de sua
versão sobre a famosa conversa com Lula --origem de toda celeuma que descambou
em ataque à liberdade de imprensa-- residia nos pequenos detalhes que emprestam
veracidade ao bom contador; um deles, o cenário: a cozinha. Teria sido naquele
recinto profano do escritório do ex-ministro Nelson Jobim, abrigado de qualquer
solenidade e sem a presença do anfitrião, que ocorrera o assédio moral
inesperado de um Lula chantageador contra um Gilmar irretocável.
Quadro perfeito. Exceto pelo fato
de não se sustentar nem mesmo no matraquear do interessado. Sim, o mesmo
magistrado suprimiu o precioso cenário despido de testemunhas na versão
apresentada ao jornal Valor do dia 30-05 quando afirmou literalmente: 'Jobim
esteve presente durante todo o tempo'. Como? E a cozinha? E a privacidade a
dois que lubrificou o assédio de um Lula irreconhecível?
Evaporou-se: Jobim estava
presente o tempo todo, afirmou o narrador em contradição ostensiva. Mas por um
bom motivo: desferir no ex-ministro de FHC e ex- presidente do STF uma
punhalada em retribuição ao desmentido categórico do anfitrião para seu relato
original do episódio à indefectível VEJA. No mesmo Valor, Gilmar insinuaria
contra Jobim uma suspeita de cumplicidade com Lula por ter lançado na mesa o
nome de um desafeto: Paulo Lacerda. Ex-dirigente da ABIN, Lacerda foi demitido
em 2008 depois que Gilmar denunciou suposta escuta da PF, nunca comprovada, em
seu escritório. Só na 5ª feira o entendimento da investida contra Jobim ficaria
completo: Serra, o candidato predileto do conservadorismo, amigo de Gilmar e de
outros da mesma cepa, prestou-se à colaborar com Veja; desinteressadamente, a
exemplo do que tantas vezes o fez também o colaborador Dadá, aparaponga de
aluguel do esquema Cachoeira. Serra incitou o amigo Jobim a falar com a revista
sobre o encontro.
Surpreendido pela trama Jobim
tirou a escada de VEJA e deu troco duplo: desmentiu Gilmar no Estadão e
confirmou a Monica Bergamo, da Folha, o que tantos sabem: Serra não falha; sua
biografia de bastidores está, esteve e estará sempre entrelaçada a golpes e
denúncias que contemplem a regressividade udenista da qual VEJA constitui a
corneta mais atuante e Gilmar o novo expoente da linha de frente lacerdista.
Diante do maratonismo verbal não
sobraria fôlego aos jornais e jornalistas amigos para conceder ao leitor um
pequeno espaço de reflexão sobre a momentosa semana final de maio, pausa todavia
ainda mais necessária à medida em que versões assentam e dúvidas emergem em
contornos mais nítidos. Ademais da evanescente cozinha do escritório do
ex-ministro Nelson Jobim, outros pontos de dissipação merecem retrospecto. Por
exemplo:
a) a reportagem publicada por
Carta Maior no dia 29-04 " Cachoeira arruma avião para Demóstenes e
'Gilmar' --com aspas por conta da identificação incompleta do ilustre viajante
e um dos motivos da fluvial verborragia togada, não tratava de pagamento de vôo
a Berlim pelo esquema Demóstenes/Cachoeira;
b) o texto, conciso e claro
baseado em escutas públicas da PF teve como foco uma 'carona aérea' no trecho
SP-Brasília, solicitada ao esquema Cachoeira para o dia 25-04 de 2011;
c) as tratativas telefônicas da
quadrilha Cachoeira apontam que os passageiros da carona viriam da Alemanha e
seriam, respectivamente, Demóstenes e 'Gilmar' ;
d) a data da chegada a São Paulo
é a mesma do retorno informado pelo próprio Gilmar Mendes em seu rally
jornalístico;
e) o horário de chegada do seu
vôo originário da Alemanha guarda proximidade com aquele informado à quadrilha.
Essas as coincidências notáveis. A partir daí os fatos e comprovantes
apresentados por Gilmar Mendes desmentem que ele tenha utilizado a dita carona
solicitada à quadrilha, fato que Carta Maior noticiou imediatamente após os
esclarecimentos do magistrado. O desencontro entre essas evidências e as
providencias tomadas pela quadrilha Cachoeira, todavia, autoriza uma indagação
que não se dissolve no aluvião verborrágico da semana, a saber: quantos
Gilmares havia em Berlim com Demóstenes Torres? E, mais que isso: quem seria o
'Gilmar' cuja inclusão na carona, aparentemente desativada, não causou qualquer
surpresa a Cachoeira, que nas escutas reage à menção do nome e da presença como
algo se não habitual, perfeitamente compatível com a extensão de seus
tentáculos e zonas de influência?
Fiel aos compromissos Carta Maior cumpre a
obrigação de manter em pauta algumas perguntas ainda sem resposta satisfatória:
Quantos gilmares havia em Berlim?
Quantos gilmares havia no escritório de Jobim
(um na cozinha e um na sala)?
E, ainda mais urgente, quantas ameaças de
fuzilamento da liberdade de expressão serão necessárias para que os partidos
democráticos e o governo tomem a iniciativa de desautorizá-lo?
Não só em
palavras, mas sobretudo na impostergável democratização da publicidade oficial,
antes que novos e velhos caçadores de jornalistas consigam transformá-la em
mais um torniquete da pluralidade de opinião.
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