domingo, 21 de abril de 2013

Uma geopolítica da dependência hídrica.


A questão da escassez de água é um dos temas ambientais globais do século XXI. Assim como acontece com a população, os recursos hídricos não estão distribuídos equitativamente pela superfície do planeta.  Há regiões onde a água é naturalmente escassa, como as áreas áridas e semi-áridas, e mesmo em áreas onde o chamado “ouro azul” é abundante, o aumento do consumo, bem superior ao incremento demográfico, o mau uso e o desperdício já indicam futuros cenários de escassez.
O Índice de Dependência de Água (IDA) permite análises geográficas e geopolíticas interessantes. O IDA mensura a proporção de água renovável, fundamentalmente de origem fluvial, oriunda de fora do território de determinado país. No fundo, oferece um número para a dependência de recursos hídricos controlados por países vizinhos.
Logo de início, obviamente, o índice revela que os países insulares – como Japão, Filipinas, Sri Lanka, Madagascar ou Cuba – exibem dependência zero, pois seus cursos fluviais nascem, fluem e deságuam dentro dos próprios territórios nacionais. Mas tais países são exceções. Na imensa maioria dos casos, a dependência de água oscila em função da combinação de variáveis   como o contorno de fronteiras do país, a disposição das unidades do relevo e o desenho das redes hidrográficas. Os casos mais interessantes são os de países de grande extensão territorial ou de países drenados por rios cujas bacias abrangem vários espaços nacionais [veja o Mapa 1].














O IDA do Brasil desmente a apreciação do senso comum, segundo a qual não temos maiores dificuldades hídricas. Nosso IDA é de 34%, o que quer dizer que cerca de um terço das águas fluviais do país têm origem fora do território nacional. Se as bacias hidrográficas do São Francisco e do Tocantins-Araguaia são integralmente brasileiras, diversos rios formadores do Amazonas têm seus altos vales na Cordilheira dos Andes. Isso significa que há forte dependência hídrica na área da Amazônia, apesar do controle brasileiro sobre quase 70% da área da bacia [veja o Gráfico].

Na bacia Platina, as coisas se invertem. Como as nascentes e parte considerável do curso dos principais rios formadores da bacia estão em território brasileiro, a dependência hidrográfica de nossos vizinhos platinos é superior ao do Brasil: Argentina (66%), Paraguai (72%), Uruguai (58%) e Bolívia (51%).
De modo geral, os países de grande extensão territorial apresentam dependência hidrográfica inferior à brasileira. A Rússia possui IDA de apenas 4%, já que a maioria de seus grandes cursos fluviais, como o Obi, o Lena, o Ienissei e o Volga têm suas bacias hidrográficas quase totalmente inscritas no espaço nacional russo. A mesma explicação vale para o Canadá, com IDA de 2%, um reflexo da circunstância de que seus grandes rios – como o Mackenzie, o Iukon e o São Lourenço, drenam fundamentalmente o próprio território canadense. O IDA de 8% dos Estados Unidos explica-se, em grande parte, pelos fatos de que de seus maiores rios, o Colúmbia, tem nascentes no Canadá e porque o país compartilha com o México a bacia do Rio Grande, curso fluvial  que serve parcialmente como fronteira entre os dois países.
A China é um caso emblemático. Seu IDA baixíssimo (1%) deriva da configuração territorial do país e da direção oeste-leste de seus principais rios: o Hoang Ho, o Yang Tse-kiang e o Sikiang são exclusivamente chineses. Ademais, no planalto do Tibete chinês estão as nascentes e os altos vales de rios transnacionais. O Bramaputra nasce na China mas atravessa a Índia e Bangladesh. O Irriwady, o Saluem e o Mekong fluem para países do Sudeste Asiático. As montanhas e altos planaltos do Tibete chinês funcionam como uma espécie de “caixa d’água” da Ásia Oriental.
Alguns países apresentam índice de dependência hídrica muito elevado, o que tem relevantes consequências geopolíticas. Um exemplo notório é o Egito, com IDA de 97%. Heródoto estava coberto de razão quando disse que “o Egito é uma dádiva do Nilo”, referindo-se a um país cujo território estende-se totalmente por áreas desérticas. O Egito é o último dos países servido pelas águas do Nilo, cuja bacia hidrográfica se estende por cerca de uma dezena de espaços nacionais. No extremo oposto, a Etiópia, um dos “vizinhos hidrográficos” do Egito, exibe o surpreendente IDA de zero, igual ao de países insulares. A explicação: os altos planaltos etíopes são dispersores  de águas. Neles, aliás, estão as nascentes do Nilo Azul e do Atbara, dois dos maiores afluentes do chamado Nilo Branco [veja o Mapa 2].
Na Europa centro-oriental, os índices de dependência variam bastante, mas chama a atenção o caso da Hungria, com IDA de 94%. O, cercado pelas cadeias montanhosas dos Alpes, dos Cárpatos, dos Alpes Dináricos e dos Bálcãs, está integralmente situado na planície Húngara e é drenado quase apenas pelo rio Danúbio. A bacia danubiana se espraia por territórios de uma dezena de países, muitos dos quais a montante da Hungria. A Alemanha, onde estão as nascentes do Danúbio, tem índice de 31%, basicamente porque também é drenada pelas águas do Reno, cujas nascentes estão na Suíça. Já a Holanda, situada no baixo vale do Reno, exibe IDA de 88%.

Há combinações altamente desfavoráveis. Países com IDA elevado, situados em regiões de escassez de água e cortados por rios que atravessam vários territórios nacionais são, como regra, sujeitos a tensões geopolíticas importantes. Dois exemplos clássicos são o Iraque (IDA de 53%) e a Síria (IDA de 80%). Ambos dependem dos rios Tigre e Eufrates, cujas nascentes estão na Turquia (IDA de 1%).

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