Apesar
de fontes de inteligência dos EUA acreditarem que a Coreia do Norte não tenha a
capacidade militar que faz questão de alardear, após lançamento de satélite em
dezembro de 2012, o Conselho de Segurança da ONU, reafirmando as exigências das
resoluções anteriores, aprovou nova resolução com o objetivo de afetar a
capacidade de Pyongyang para adquirir componentes para seus programas bélicos.
No entanto, apenas três semanas após a decisão da ONU, a Coreia do Norte
realizou seu terceiro teste nuclear, ficando muito próxima de desenvolver uma
ogiva nuclear pequena, mas suficiente para armar qualquer um dos tipos de
mísseis que possui.
A
partir daí, assistimos a uma progressiva escalada de tensões com declarações
contundentes e surpreendentes por parte do presidente Kim Jong Um, chegando
mesmo a dizer que poderia realizar um ataque nuclear contra os EUA. Além de
aumentar a pressão sobre a Coreia do Norte, na ONU, os EUA intensificaram seus
exercícios militares com a Coreia do Sul, enviando bombardeiros B-2 com
capacidade para ataque nuclear. Em discurso proferido no Pentágono, o
secretario de Defesa, Leon Panetta, disse que os EUA devem estar em permanente
estado de alerta, pois são continuamente ameaçados por ‘Rogue States’ (Estados
párias) como o Irã e a Coreia do Norte.
Quão
real é a possibilidade de um ataque nuclear? É possível dizer que o Irã ou a
Coreia do Norte são mais propensos a usar armas nucleares que os outros poderes
nucleares? É possível construir um argumento convincente capaz de explicar por
que Irã e Coreia do Norte são “racionais”, em termos da busca de seus
interesses nacionais, e “irracionais” quando se trata do uso de armas
nucleares?
Creio
que o conceito de Rogue State é chave para compreendermos melhor a crise atual,
bem como as estratégias norte-americanas para lidar com o tema da proliferação
nuclear após o final da Guerra Fria. No início dos anos 90 o Pentágono fazia a
avaliação de que a doutrina da dissuasão que funcionou tão bem contra as
ameaças do século 20, já não seria adequada em relação aos “Estados Párias”,
que são atores que não têm atitudes previsíveis, ou lógicas, como os antigos
líderes soviéticos ou chineses. A dissuasão funcionou no passado porque os EUA
compreendiam muito bem aqueles que queriam dissuadir, mas a dificuldade de
compreensão mútua entre os EUA e a Coreia do Norte, Iraque ou Irã tornava os
tradicionais mecanismos da contenção e da dissuasão pouco efetivos para impedir
um atacar. O documento da Doutrina de Segurança Nacional dos EUA (2002),
elaborado sob o impacto dos atentados do dia 11 de Setembro, veio apenas
reafirmar a percepção das ameaças dos Rogue States, levando-a às últimas
consequências e justificando a necessidade de novas respostas que tivessem como
fundamento principal a seguinte concepção: não esperar “que as ameaças se
concretizem” e agir antecipadamente (‘preemptive attack’). Nas palavras do
ex-vice-presidente dos EUA, Cheney, trata-se de um inimigo bem equipado, com
antecedentes de agressividade e de desprezo por qualquer população ou
território. Enfim, um inimigo que "não poderia ser dissuadido, contido ou
apaziguado”.
Mas
não poderíamos pensar na hipótese de que a estratégia de dissuasão funcionou
tanto para Irã, como para Iraque de Saddam Hussein, quanto para a Coreia do
Norte, tendo falhado apenas nos momentos em que os EUA não a aplicaram
corretamente, como em 1950 (guerra da Coreia), e 1990 (Guerra do Golfo)? Os
critérios de “racionalidade” aplicados a Estados como a Coreia do Norte e o Irã
não são muito mais rigorosos - e deturpados - do que aqueles que são aplicados
à maioria do outros Estados, como Israel, India e Paquistão, por exemplo?
Pensadores do ‘mainstream’ das relações internacionais nos EUA – mas,
atualmente muito criticados nesse tema - Kenneth Waltz e John Mearsheimer, já
escreveram artigos e livros argumentando que a dissuasão nuclear em nível
global (EUA, Rússia, China, Inglaterra e França) e regional (Índia e Paquistão,
sobretudo) impediu, com sucesso, a ocorrência de conflitos armados (com armas
convencionais ou nucleares). Chegaram até a sugerir que a melhor maneira de
manter um equilíbrio de poder estável e impedir qualquer estado de usar armas
nucleares é promover a proliferação, em vez de tentar limitá-la. Os professores
apontam para o fato que desde 1945 apareceram várias potências nucleares com
regimes políticos diversos, mas nenhum deles chegou a usar armas nucleares.
Claro, com exceção da democracia norte-americana!
É
crível supor que Kim Jong-Un e os seus conselheiros militares sejam loucos? Que
eles não têm conhecimento de que a guerra contra os EUA significaria certamente
a destruição do seu próprio país? Ou eles sabem exatamente do que se trata e
são “Estadistas Suicidas” que querem destruir seus próprios Estados?
O
ex-ministro das relações exteriores da Coreia do Sul, Yoon Young-kwan,
(2003-2004) se lembra de ter tido imensas dificuldades “para convencer os
legisladores da administração Bush a negociarem com a Coreia do Norte, em vez
de meramente aplicar pressão e esperarem que o Norte capitulasse”. De fato, aos
olhos dos líderes políticos do Ocidente (incluindo os Japoneses), argumenta o
ex-ministro, a Coreia do Norte sempre foi vista como um país pequeno e marginal,
cujos problemas econômicos a situavam no limite da desintegração. Os líderes
das grandes potências preferiram não se incomodar com a Coreia do Norte e por
isso reagiam de modo ‘ad hoc’ sempre que esta criava um problema de segurança.
Isso mudou apenas a partir do momento em que se constatou o aumento da sua
capacidade balística. Em abril de 1992, quando a Coreia do Norte enfrentava
sérios problemas econômicos e sociais, o presidente Kim expressou claramente um
desejo de estabelecer relações diplomáticas com os EUA a Coreia do Sul, os
quais se recusaram, pois esperavam simplesmente o país se desintegrasse
(Realism on North Korea, project-syndicate Apr. 1, 2013)
O
fato é que desde a guerra do golfo em 1990, com o início daquilo que alguns
chegaram de denominar de Mundo Unipolar, os EUA cultivam a crença de que quando
atacam ou ameaçam atacar um inimigo, todo o sistema de Estados compreenderia os
custos de se opor aos seus objetivos. Como consequência, temendo ser o próximo
alvo, esses atores se dobrariam a vontade dos norte-americanos
(‘bandwagoning’). Referindo-se à decisão da Líbia de abandonar seus programas
de armas de destruição em massa e de admitir as inspeções internacionais em
2004, o então secretario de Defesa dos EUA, Rumsfeld, observava que “estas
novidades (guerras do Afeganistão e Iraque) demonstram que o que temos fazendo
é estrategicamente sólido, além de moralmente correto” .
Essa
é única possibilidade de ação racional (‘bandwagoning’) admitida pelos EUA para
a conversão dos Rogue States. Não poderíamos formular outras hipóteses para a
atitude da Coreia do Norte, como mais uma tentativa de angariar apoio interno
por meio da exacerbação da retorica do inimigo externo? Ou ainda, a tática de
dar a impressão de que é capaz de fazer qualquer coisa para alcançar seus
objetivos, incluindo até mesmo o uso de armas nucleares, na esperança de ganhar
concessões na mesa de negociação? Membros do governo norte-americano reclamam
que a Coreia do Norte age constantemente de forma ambígua ou contraditória,
falando em pacificação, ao mesmo tempo em que eleva o tom belicoso em suas
declarações. Ora, sem entrar no mérito da questão, emitir mensagens ambíguas
não é próprio daquilo que denominamos de dissuasão? Os dirigentes da Coreia do
Norte não estariam apostando no fato de que é possível atingir o status
alcançado por Israel, Índia e Paquistão na questão nuclear?
Não
seria, isso sim, uma atitude típica de Rogue State excluir todas as hipóteses
possíveis que mencionamos acima e adotar apenas aquela que parece ser a menos
provável: a de que Kim Jong realmente quer provocar uma guerra nuclear?
Creio
que a célebre frase do pensador francês Raymond Aron, que definiu como ninguém
a situação dos poderes nucleares durante a Guerra Fria, continua atual: “paz
impossível, guerra improvável”. (Carta Maior)